segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Um filme que reflete sobre a passagem do tempo, a mortalidade, os sentidos e o amor — e busca materializar essas reflexões em sua forma



'Toda a primeira hora do filme transcorre sob o ponto de vista dos anjos, sem qualquer tentativa de eixo narrativo' [na foto, Gamiel]


Wim Wenders sempre foi um cineasta interessado em examinar os limites e as estruturas de sua arte. Em 1982, Wenders alugou o quarto 666 de um hotel em Cannes e ouviu Godard, Antonioni, Herzog e Fassbinder refletirem sobre o futuro do cinema durante o advento do vídeo. No mesmo ano, o diretor filmou O Estado das Coisas um filme sobre as impossibilidades do cinema e sua escravidão do suporte físico, e três anos depois foi para Tóquio em busca do cinema de Yasujiru Ozu, no poético Tokyo-Ga.


Finalmente, em 1987, Wenders pareceu materializar toda sua reflexão em um longa que se tornou sua obra prima e um dos maiores exemplos de como a forma de um filme expressa seu conteúdo.

Asas do Desejo acompanha Damiel e Cassiel, dois anjos que vagam pela Berlim Ocidental, provendo conforto e alento, vigiando os humanos, sem nunca chegarem perto demais. Para os dois anjos a humanidade é um conjunto fabuloso e enorme de individualidades que eles nunca chegam a conhecer.

O filme se inicia justamente com diversas vozes se sobrepondo, enquanto a câmera passeia por um prédio de apartamentos. Ouvimos os pensamentos dos moradores, trivialidades como os remédios a tomar, questões universais como amores perdidos e temas profundos como a morte. Cada apartamento possui seu próprio drama e vamos passando de um para outro, mudando sempre antes que alguma história se torne particularmente interessante. A polifonia angustiante, que se transforma em uma massa indistinta de sons e o movimento fluído da câmera recriam aquilo que os anjos veriam. Desde o primeiro plano do filme Wim Wenders deixa claro que se trata capturar sensações.

Toda a primeira hora do filme transcorre sob o ponto de vista dos anjos, sem qualquer tentativa de eixo narrativo. Vemos moradores da cidade, ouvimos suas angústias, vemos Damiel e Cassiel conversarem e caminharem juntos, alheios ao mundo e ao tempo. Absorvemos Berlim da mesma forma que os anjos, vemos e sentimos o que eles devem ver e sentir. 




'A humanidade não é uma escolha óbvia: ele ganha o toque, o amor, o gosto das coisas e as cores, mas também a dor, o sofrimento, as angústias e a morte'


No entanto, Damiel se apaixona por uma trapezista. Fascinado, ele a segue em seu camarim, nas ruas, nas apresentações. Se antes toda a humanidade era um conjunto de seres indiferenciáveis e incompreensíveis, agora, a partir de seu apego a uma mulher, Damiel passa a se questionar como seria poder sentir, tocar, ver cores, ter medo do tempo que passa.

O tempo, a mortalidade, talvez sejam os temas centrais de Asas do Desejo. Ao optar ser humano Damiel opta por ser mortal. A humanidade não é uma escolha óbvia: ele ganha o toque, o amor, o gosto das coisas e as cores, mas também a dor, o sofrimento, as angústias e a morte. Durante todo o filme Cassiel recita a “Canção da Infância”, poema escrito por Peter Handke (poeta modernista alemão e colaborador frequente de Wim Wenders) que diz “quando a criança era uma criança, ela não sabia que era uma criança, tudo era alma e todas as almas eram uma”. Tornar-se humano, seja ao crescer ou cair, significa dar as coisas seu nome certo, entender sua função e lugar e perder a possibilidade de que “tudo seja alma”.

O poema segue, perguntando “por que eu sou eu e não você?/ Por que estou aqui e não lá?/Onde começa o Tempo e onde termina o Espaço?/A vida sob o sol não é apenas um sonho?” Ou seja, o que são os sentidos? O que é isso que orienta a vida humana? O que Damiel ganhará quando fizer sua queda em busca do amor pela trapezista?

A resposta vem na forma de um outro anjo caído: ganha-se café e cigarros. A possibilidade de sentir, de passar frio, de não ter dinheiro. Não é uma escolha óbvia, mas é a escolha que seduz Damiel, fascinado pela concretude humana, tão oposta a sua absoluta liberdade de anjo.

'Tornar-se humano significa dar as coisas seu nome certo, entender sua função e lugar e perder a possibilidade de que 'tudo seja alma'' [na foto, Cassiel]


Quando Damiel cai o filme se torna colorido porque ele passa a ver o mundo em colorido. O espectador entende o abismo de diferença entre o que ele era e o que ele é agora. Antes a fotografia era certamente mais bonita, mesmo os cantos mais sórdidos de Berlim pareciam poéticos, dramáticos, belos, agora o que vemos é uma cidade suja e decaída. Ainda assim, há algo de irresistível na cor, algo que impediu que o cinema voltasse atrás uma vez que o adotou: há algo de concreto, de real, de vivaz nas cores que o preto e branco exclui. Talvez Berlim tenha se tornado mais feia para Damiel, mas o espectador certamente sente junto com o anjo o encanto que se ganhou ali.

Asas do Desejo foi diversas vezes descrito como o romance entre um anjo caído e uma trapezista. Não é. É um filme que reflete sobre a passagem do tempo, a mortalidade, os sentidos e o amor — e busca materializar essas reflexões em sua forma. Em certa medida ele alcança esse objetivo, tornou-se um dos filmes mais difíceis da história do cinema, mas também um dos mais belos e mais únicos. 




Nenhum comentário:

Postar um comentário