terça-feira, 11 de dezembro de 2012

QUEM TEM MEDO DE DERRIDA? EU!


Tremam na base: acaba de sair no mundo anglo-saxônico a primeira biografia de Jacques Derrida, o ideólogo da desconstrução. Anotem aí: Derrida, A Biography, de Benoit Peeters (Polite Press, 640 pags. $ 25,00).

O biógrafo ralou: papeou com mais de 100 pessoas que conviveram com o biografado, contou com uma mãozinha da viúva de Derrida e passou a pente fino um ramalhete de cartas inéditas. Ironicamente, o livro anterior de Peeters é uma biografia de Hergé, o pai do Tintin.

(ALBERT CAMUS: COMO DERRIDA, TAMBÉM PIED-NOIR E ENGOLINDO PERUS)

Derrida nasceu na Argélia, então encaçapada pelos franceses. Seus pais eram descendentes dos judeus espanhóis que se refugiaram no norte da África durante a Inquisição. Em 1870, a comunidade judaica argelina recebeu a cidadania francesa (ao contrário da população muçulmana). Jacques veio ao mundo em 1930 e durante a adolescência queria ser craque de futebol, como outro pied-noir que batia um bolão, Albert Camus. O personagem que brota da biografia é vulnerável, sensível, dado a surtos de melancolia, neurótico, hipocondríaco e sempre à beira do suicídio. Uma alma atormentada e lírica. Mas também um obsessivo-compulsivo, maníaco pelo controle e monstruosamente arrogante. A maioria dos entrevistados evocou a aptidão de Derrida para falar sem parar durante horas a fio. Consta que era espirituoso e daria um bom stand-up comedian.

(DERRIDA: “O CHATO NÃO É SER HERMÉTICO, É SER GOSTOSO”)

Quando os nazistas ocuparam a França, os judeus argelinos foram privados da cidadania e Derrida acabou expulso da escola. Puxou o carro para Paris. Outra característica de Jacques: com aquele topete tipo Zé Bonitinho, foi um sedutor inveterado, da escala de um Georges Simenon (que proclamava ter comido 10 mil mulheres em 64 anos). Seu romance epistolar (The Post Card) é composto de cartas a uma amante anônima.
Aparentemente, o axioma doutrinário de Derrida era: pra quê simplificar se a gente pode complicar? O primeiro livro dele foi uma tradução de Husserl – o texto do formulador da Fenomenologia tinha 43 páginas; a introdução do tradutor, 170. Ah, que saudades da limpidez de um Montaigne. Aliás, o hermetismo gênero Derrida foi um dos alvos de um dos mais divertidos trambiques da história cultural do século 20.

(SOKAL: MATANDO A COBRA E MOSTRANDO O PAU)

Em novembro de 1994, Alan Sokal, professor de física da Universidade de New York, submete um artigo intitulado “Transgressing the Boundaries: towards a transformative hermeneutics of quantum gravity” à prestigiosa revista americana “Social Text”, baluarte dos “Cultural Studies” (feminismo, discurso do colonizador e o escambau – aquilo que Harold Bloom definiu como “a Escola do Ressentimento”). Em abril de 1995 o artigo ganha o imprimatur do comitê editorial, e foi publicado em abril de 1996, em uma edição especial inteiramente dedicada a refutar aqueles que acusavam os Estudos Culturais de panfletarismo estrábico.
Logo em seguida, na edição de maio/junho da revista “Língua Franca”, em um texto intitulado “Um físico faz experiências com estudos culturais”, a pegadinha é desmascarada pelo próprio autor. Sokal anuncia que seu ensaio não passava de um caminhão de besteirol e non-sequiturs, ainda que repleto de referências autênticas a proeminentes intelectuais como Lacan, Irigaray, Deleuze, Derrida, Kristeva, Serres, Latour, Lyotard, Aronowitz.

Amplamente explorado pela mídia internacional, o troço assumiu proporções de escândalo sísmico. Em outubro de 1997, Sokal e Bricmont (professor de física teórica da Universidade Católica de Louvain) publicam em francês o livro Impostures intellectueles (editado no Brasil pela Record, 1999), com chumbo grosso sobre “o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos”.
Boa parte da academia norte-americana já tinha arriado os quatro pneus por Derrida, naquela síndrome perversa que faz os americanos adorarem odiar os franceses (assim como os franceses amam detestar os EUA – vide Godard). Na Universidade da Califórnia, quando Derrida vendia seu peixe, reinava uma atmosfera quase teológica – os famosos “seminários” assumiam um sentido também sacerdotal.

(FOUCAULT: “DERRIDA É MANÉ!”)

Mesmo antes de Sokal, que demoliu a desconstrução, Derrida levou umas belas coronhadas. Uma delas foi infligida por um ex-professor dele, Michel Foucault (que nunca sabia se dava zero ou dez aos trabalhos do pupilo). Depois de algumas escaramuças conceituais, Foucault pegou pesado, cornetando que o Desconstrucionismo não passava de “uma pedagogia insignificante.”
E que diabo a desconstrução implodia? (Pigarro. É melhor tomarem uma aspirina antes das próximas frases.) Para Derrida, a linguagem diz sempre mais do que pensamos que diz. É que ela tem uma tendência a serrar o galho onde senta, e até mesmo a dar tiros em seu próprio pé. Assim, não existe nenhuma libertação final que desemboque numa utopia de claridade, transparência ou compreensão (vai ver que é por isso que os textos desconstrucionistas são tão turvos e herméticos). Nada de absolutos, nem sequer os absolutos caleidoscópicos do estruturalismo.

Em 1967 Derrida botou pra fora Grammatologie, considerada sua obra-prima. Acho que apenas uns gatos-pingados realmente leram esse livro irrespirável de cabo a rabo – o que não o impediu de descambar em ícone. Um ano mais tarde, um exemplar de Grammatologie deu o ar de sua graça no filme Le Gai Savoir, de Jean-Luc Godard.







(GODARD E “LE GAI SAVOIR”: DERRIDA A BORDO)


(EUGENIDES: “CUMA?”)

Sobre o que é o livro, afinal? Bem. Quando Madeleine, a heroína do romance The Marriage Plot, de Jeffrey Eugenides, faz essa pergunta a um CDF de sua faculdade, ouve a seguinte vociferação: “Se o livro é ‘sobre’ alguma coisa, é sobre a necessidade de parar de pensar que os livros são sobre alguma coisa.”
O argumento de Derrida é que, de Platão a Lévi-Strauss, o pensamento ocidental se enredou irremediavelmente na ilusão de que a linguagem pode fornecer um acesso a uma realidade para além da própria linguagem – uma experiência não-mediatizada de verdade e do ser, que ele chamava sarcasticamente de “presença”. Mesmo Heidegger, um crítico encarniçado da metafísica, teria sucumbido a tal miragem. E essa fantasmagoria, sempre segundo nosso frère Jacques, foi o corolário da longa saga do “logocentrismo” – o privilégio do “mundo articulado e verbalizado” enquanto tabernáculo da “presença”. Enquanto isso, o “texto” era chutado para escanteio como um “apêndice perigoso”, alienado da voz, parasitário e até equívoco. Derrida, pelo contrário, entroniza o “texto”, erigindo-o em fetiche.
Já manjaram, né? A desconstrução é a física quântica da filosofia. Assim como o gato de Schrodinger está ao mesmo tempo morto e vivo, segundo ela também a botica platônica é remédio e veneno. Significados encontram-se sobrepostos numa aporia – não “ou” e “ou”, mas “e” e “e”. Ser e não ser. Derrida não foi o primeiro a refletir sobre tais questões. Elas já tinham sido dissecadas por dois filósofos tão distantes no tempo quanto David Hume e Wittgenstein, por exemplo.

Cáspite, não façam essa cara de pum! Tentei explicar o melhor pude, o que não é nada canja. Tomemos a proposição: “O porco merece seu nome, já que é um animal muito pouco asseado.” O que nos encafifa nela? É a suposição de que a palavra “porco” já exprime a essência da falta de limpeza. Na verdade, porém, é completamente arbitrária, e nada nela exprime a essência de algo porco. Um porco não se chama porco por a palavra exprimir de forma adequada o que é a essência desse animal, mas para que não o confundamos com as palavras “porto” ou “pouco”.
Os exemplos de Derrida vêm do Alemão, em que o nome do cisne (Schwan) se assemelha ao do porco (Schwein). Daí deduz que nada, em princípio, impediria que a ave branca e pescoçuda fosse designada por “porco”, e o animal enlameado por “cisne”. Portanto, poderíamos falar de “O Lago dos Porcos”, ou “Leda e o Porco”, ou ainda do “Porco de Avon”.
Eis o que mais me intriga: como uma teoria que canoniza o “texto”, pode lidar com este de um modo tão burocrático, descafeinado e maquinal. Aqui, o prazer do texto e da semântica são os últimos que falam e os primeiros que apanham. Vai entender.
No modismo lítero-universitário, o arrazoado de Derrida ganhou no grito e apeou Adorno. Uma coisa a gente tem de reconhecer: se Derrida não é mais complexo que Adorno, é muito mais complicado. O que, desde a querela dos universais, cai muito bem entre os escolásticos. Pelo amor de Deus, sai uma navalha de Ockham no capricho!
(ESTE POST É DEDICADO AO MEU CHAPA CARLOS BALISTA)


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